Além disso, a escola militarizada afronta todos os princípios constitucionais que regem a educação

Algumas unidades da Federação, inclusive com o apoio do Ministério da Educação – MEC, tem optado por implementar a militarização de escolas públicas, sem debater com a comunidade escolar e a sociedade em geral os efeitos dessa decisão bastante polêmica.

A Constituição Federal (CF-1988) estabelece os princípios e as condições para a oferta do ensino público no país, e a militarização das escolas públicas não se amolda a NENHUM dos preceitos da Carta Magna, seja em relação à forma de oferta pelo poder público, seja quanto ao conteúdo pedagógico.

Raras foram as ocasiões, no regime democrático após 1988, em que uma proposta do poder público afronta tantos preceitos constitucionais de uma só vez, o que denuncia o caráter antidemocrático das escolas militarizadas. E para melhor entender essa peculiar experiência posta em prática por alguns gestores públicos, passemos à análise comparativa da referida proposta com os preceitos do art. 206 da CF-1988, que regem a educação nacional.

I. Violação da igualdade de condições para o acesso e permanência na escola (inciso I do art. 206, CF-1988)

A escola pública é um direito da sociedade voltado à formação humanística, cidadã e profissional de todos/as os/as brasileiros/as, com vistas a garantir o bem estar individual e coletivo. A democracia e a inclusão social requerem escola pública de qualidade para todos/as, devendo o poder público garantir igualdade de acesso e a permanência nas instituições de nível básico.

Diferente do que determina a CF-1988, as escolas públicas, quando militarizadas, tornam-se seletivas ao priorizarem certos investimentos que se mantêm escassos em outros estabelecimentos, além do que cerceiam o acesso de determinados estudantes tidos como “inconvenientes”.

Em relação ao financiamento per capita, este é maior nas escolas militarizadas, inclusive com possibilidade de rubricas extras das Secretarias de Segurança Pública. Por outro lado, para se alcançar os objetivos da propaganda, pautada na melhoria do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica – IDEB e na diminuição da violência escolar, diversos estudantes que não se enquadram nos padrões de comportamento militar nem nas médias de proficiência estudantil traçadas para essas escolas, têm sido literalmente expulsos ou transferidos para outras escolas públicas.

Outro “efeito colateral” da militarizadas escolar se refere ao fechamento das escolas no período noturno, certamente para mascarar os índices de violência escolar. Ocorre que essa restrição de direito tem inviabilizado o acesso de milhares de jovens e adultos à escola. Verdadeiro crime!

A educação como direito subjetivo deve ser garantida a todos/as, e as práticas seletivas da escola militarizada atentam contra um dos direitos mais consagrados por nossa sociedade e pela comunidade internacional. Corremos o risco de reproduzirmos apartheids socioeducacionais incompatíveis com o processo de desenvolvimento humanitário!

Ademais, as práticas restritivas de direitos contrariam não só ordenamentos constitucionais, como também as metas do Plano Nacional de Educação quanto à inclusão e à elevação da escolaridade em todas as faixas etárias da população. Em pleno século XXI, nosso país possuí quase 80 milhões de jovens e adultos sem ter concluído a educação de nível básico. Razão pela qual torna-se inadmissível as práticas de fechamento de escolas e de transferência forçada (ou exclusão) de estudantes, devendo todos os casos serem apurados e punidos.

II. Violação da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (inciso II do art. 206, CF-1988)

A escola pública é fundamentalmente uma instituição plural, onde diferentes classes sociais e concepções de mundo convivem harmonicamente, em respeito à diversidade.

O Brasil é um país de muitas diferenças, sejam elas sociais, econômicas, étnica-raciais, religiosas e de gênero, o que exige dos/as educadores/as atenção, respeito e liberdade para ensinar e estimular debates voltados para a construção de uma sociedade fraterna e igualitária.

O respeito às diferenças precisa ser compreendido e tratado nas escolas, e qualquer projeto pedagógico que inviabilize os pressupostos dessa liberdade grafada no inciso II do art. 206 da CF-1988, tornar-se-á anacrônico e prejudicial para com os objetivos maiores da educação, que é incluir e formar a todos/as sob as bases da democracia e da cidadania.

Neste sentido, como admitir que uma escola pública possa estabelecer regra de conduta militar, quando seu objetivo é atender a todos/as, indistintamente? Para os que desejarem uma educação de princípio militar, há espaços específicos para isso: as próprias escolas militares. Mas tornar o espaço público para impor cortes de cabelo, proibir o uso de brincos, piercing, óculos escuros, cavanhaque etc, forçar estudantes a “bater” contingência para educadores e gestores militares são práticas que desrespeitam os limites da pluralidade de atendimento nas escolas públicas.

Todas as escolas devem atender indiscriminadamente os diversos segmentos sociais, respeitando a individualidade das pessoas. Mulheres, homens, LGBT, enfim, todos/as não podem ser obrigados, num ambiente escolar público, a se submeterem a regramentos militares ou de qualquer outra ordem institucional. Essa imposição sociocultural – com grave impacto na vida escolar, determinando a exclusão dos diferentes e delimitando as formas de expressão do conhecimento e da arte – não tem respaldo na Constituição e deve ser abolida dos sistemas de ensino.

III. Violação do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (inciso III do art. 206, CF-1988)

Assim como o pluralismo social, econômico, político e cultural deve ser respeitado no ambiente escolar, as diferentes ideias e concepções pedagógicas também precisam ser garantidas para confrontar teses e opiniões sobre determinados assuntos.

Nos últimos anos, há uma insistente predisposição de certos grupos sociais em cercear esse princípio constitucional, empunhando a bandeira da falaciosa “Escola sem Partido”, que no fundo se traduz em mordaça para os/as educadores/as e em desejo de implantar o pensamento único nas escolas.

No entanto, recentes decisões do Supremo Tribunal Federal têm julgado inconstitucionais todas as leis denominadas “Escola sem Partido”, em âmbito municipal e estadual, razão pela qual o Congresso Nacional deveria seguir o exemplo do STF e pôr fim a essa discussão prejudicial para a educação.

Dentre os argumentos do STF para suspender liminarmente as referidas leis que atentam contra o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas nas escolas, destacam-se:

i. Vedações genéricas de conduta que, a pretexto de evitarem a doutrinação de alunos, podem gerar a perseguição de professores que não compartilhem das visões dominantes. Risco de aplicação seletiva da lei, para fins persecutórios. Violação ao princípio da proporcionalidade (CF/1988, art. 5º, LIV, c/c art. 1º);

ii. Supressão de domínio do saber do universo escolar. Desrespeito ao direito à educação com o alcance pleno e emancipatório que lhe confere a Constituição. Dever do Estado de assegurar um ensino plural, que prepare os indivíduos para a vida em sociedade. Violação à liberdade de ensinar e de aprender (CF/88, arts. 205, art. 206, II, III, V, e art. 214);

iii. Comprometimento do papel transformador da educação. Utilização do aparato estatal para manter grupos minoritários em condição de invisibilidade e inferioridade. Violação do direito de todos os indivíduos à igual consideração e respeito e perpetuação de estigmas (CF/88, art. 1º, III, e art. 5º).

iv. Violação ao princípio da proteção integral. Importância da educação sobre diversidade sexual para crianças, adolescentes e jovens. Indivíduos especialmente vulneráveis que podem desenvolver identidades de gênero e orientação sexual divergentes do padrão culturalmente naturalizado. Dever do estado de mantê-los a salvo de toda forma de discriminação e opressão. Regime constitucional especialmente protetivo (CF/88, art. 227).

IV. Violação da gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais (inciso IV do art. 206, CF-1988)

As escolas públicas são regidas pelo princípio da gratuidade, não podendo ser cobrada qualquer taxa ou mensalidade dos estudantes ou seus familiares. Ocorre que as escolas militarizadas, não raro, fixam contribuições para uniformes e demais aparatos exigidos pelas corporações militares que administram essas instituições.

Diferente das escolas militares tradicionais, todas criadas por meio de legislação específica e com autorização para cobrar taxas e mensalidades, a escola pública que incorpora a doutrina militar em suas práticas pedagógicas continua pertencendo à rede pública. E isso cria uma anomalia jurídica que necessita ser melhor investigada, inclusive para fins de adequação do financiamento dessas escolas (integram a rede pública gratuita de ensino ou serão transferidas para as secretarias de segurança pública?).

Independentemente da questão jurídica, fato é que a cobrança de taxas de estudantes de baixa renda pode estimular a evasão escolar, e é imperioso que os órgãos de fiscalização acompanhem o cotidiano nessas instituições militarizadas para evitar retrocessos socioeducacionais, quiçá recomendando o fim dessa esdrúxula parceria.

V. Violação da gestão democrática do ensino público (inciso VI do art. 206, CF-1988)

Além do texto constitucional, a meta 19 do Plano Nacional de Educação, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, além das legislações subnacionais, consagram a gestão democrática como instrumento essencial para interagir com a comunidade escolar, para construir as políticas educacionais e referenciá-las nas escolas e para construir o projeto político-pedagógico de cada unidade escolar em sintonia com os anseios de sua comunidade.

A gestão democrática deve ser operacionalizada por Conselhos Escolares e Direções preferencialmente eleitas pela comunidade, por Conselhos de Educação que priorizem a participação social e dos/as educadores/as, por Conselhos de Fiscalização dos recursos públicos (merenda, Fundef e outros), devendo-se, ainda, estimular a participação dos estudantes no cotidiano escolar, através dos Grêmios Estudantis.

Esse ambiente de participação democrática dos atores escolares, inclusive na tomada de decisões, é primordial para construir o sentido de pertencimento da escola à sua comunidade, evitando a violência física e a depredação da escola.

No entanto, a ingerência militar no ambiente escolar põe por terra essas premissas legais e indispensáveis para a qualidade da educação. A construção da gestão democrática é um processo desafiador e de desprendimento dos gestores públicos, a fim de protagonizar os atores escolares. Diversas pesquisas associam a qualidade do ensino a patamares satisfatórios de gestão democrática. Mas, como se sabe, em muitos lugares opta-se por medidas unilaterais para a educação, geralmente descontínuas (muda ao sabor de cada administração), o que dificulta a autonomia da escola e a melhoria dos níveis de qualidade.

Ao invés de investir em experiências exitosas de gestão democrática, alguns gestores com viés antidemocrático passaram a militarizar escolas sob o pseudo argumento de combater a violência e melhorar a aprendizagem. Engodo! Tal como mostram as experiências in loco, a militarização escolar tem gerado fechamento de escolas, evasão estudantil, imposição de condutas atípicas ao ambiente escolar plural, conflitos com educadores/as e estudantes. Um retrocesso que se não for impedido agora, causará sérios problemas num futuro breve.

 

VI. Violação da garantia de padrão de qualidade (inciso VII do art. 206, CF-1988)

O padrão de qualidade é ponto crucial na estratégia propagandista de militarização das escolas públicas.

Há tempos impera na mídia e nos governos conservadores a disposição em difamar a coisa pública, especialmente a educação, numa tentativa de abrir cada vez mais o “mercado educacional” para o setor privado.

Várias ações têm sido tomadas na perspectiva de privatização e mercantilização da educação pública, a exemplo da reforma do ensino médio. Mas é com o rebaixamento do custo per capita do Fundeb (e dos demais investimentos na educação), e com a omissão da implememtação do Custo Aluno Qualidade (em nível nacional), que o Estado brasileiro promove o desmonte da escola pública.

As estratégias 20.6 a 20.8, além da 20.10, do Plano Nacional de Educação, indicaram conceitos, prazos e patamares para a União instituir o Custo Aluno Qualidade. As mesmas expiraram em 2016, sem que qualquer ação no sentido de priorizar o orçamento da educação pública fosse tomada. Pelo contrário! Em recente decisão, a Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação revogou o único instrumento normativo que se referia ao Custo Aluno Qualidade.

Um dos instrumentos que embasam a militarização das escolas públicas é a possibilidade de as mesmas poderem contar com mais recursos financeiros, pedagógicos e administrativos. Ou seja: os que militarizam as escolas reconhecem que suas estruturas são carentes e necessitam de mais investimentos. Todavia, ao invés de priorizarem o investimento em todas as escolas, inclusive aumentando o atendimento integral, optam por medidas seletivas e repressivas a fim de mascarar os verdadeiros problemas da educação pública.

VII. Violação das políticas de valorização, organização e de reconhecimento da identidade profissional dos educadores das escolas públicas (incisos V e VIII e parágrafo único do art. 206, CF-1988)

A substituição de profissionais da educação (com formação específica para atuar nas escolas públicas) por militares encarregados pela segurança pública ostensiva, revela uma opção temerária de enfrentamento dos problemas de ordem social por processos de “fascistização”.

A Polícia e os Bombeiros Militares têm sua importância na sociedade, mas essa não se confunde com educação plural e democrática que se deve desenvolver nas escolas públicas. Por outro lado, os colégios militares cumprem suas funções específicas e atreladas às forças militares. O que não pode é confundir os papéis dessas instituições sociais e educativas.

Ao se colocar militares para administrar e coordenar atividades pedagógicas nas escolas públicas, está se retirando a autonomia e a importância dos profissionais da educação. Pior: em muitos casos há episódios de mal tratamento de militares a professores e até de agressões físicas a educadores/as e estudantes.

Além de interferir no projeto pedagógico das escolas, a ação militar nas escolas tem por objetivo intimidar e impedir a organização dos trabalhadores (professores e funcionários) por melhores condições de trabalho e salários. As greves, última forma de reivindicação de direitos, tendem a ser inviabilizadas nas escolas militarizadas, impedindo a livre organização dos/as trabalhadores/as.

A maneira correta de as forças militares agirem nas escolas seria por meio de suporte à segurança das instituições e de seus integrantes (estudantes, trabalhadores e comunidade em geral). Agindo diretamente na organização e na administração dos trabalhos pedagógicos, há perigosa inversão de competências e valores e uma flagrante imposição ideológica da força sobre o diálogo e o respeito à diversidade.

É preciso desmilitarizar e investir nas escolas públicas e em seus profissionais!

Democracia escolar é o caminho para a qualidade da educação!

Brasília, 9 de abril de 2019
Diretoria da CNTE

Cuiabá, MT - 10/04/2019 10:28:59


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