Antes mesmo de serem divulgadas as notas
do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), para saber quais escolas têm um bom
desempenho no teste basta verificar o nível socioeconômico (NSE) dos alunos que
estudam na instituição. A constatação foi feita pelo professor Francisco
Soares, do Grupo de Avaliação e Medidas Educacionais (Game) da Faculdade de
Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ao analisar as médias
obtidas por estudantes das escolas de Belo Horizonte na edição de 2011 e
compará-las com o indicador social do NSE - estabelecido conforme dados de
renda, escolaridade e ocupação informados no questionário do Enem -, o
professor percebeu uma associação quase perfeita entre os dois fatores, o que
resultou em uma reta praticamente constante: quanto maior o NSE, maior a nota
no exame. O estudo, mesmo focado em uma única capital, reflete um quadro
nacional, opina Soares. Na comparação
feita pelo professor, a medida de associação entre os dois fatores resultou em
uma correlação de 0,883 (muito próxima de uma correlação perfeita, cujo valor
seria 1). Isso significa que o NSE reproduz quase fielmente a ordenação dos
colégios no ranking do Enem. "Não é uma coisa pequena, acidental, pelo
contrário. É uma associação muito alta. Posso prever o resultado sem tê-lo,
basta olhar o NSE", diz o professor da UFMG. Para montar a
tabela, Soares avaliou cada questionário e produziu a média do NSE de cada
aluno. Depois, estabeleceu o valor médio para cada escola. Foram incluídas 128
escolas (81 delas privadas) das quais mais de 50% dos alunos tenham comparecido
ao Enem no ano passado. Após esse processo, ele comparou os dados com as notas por
escola, divulgadas pelo Ministério da Educação (MEC) em 22 de novembro deste
ano. Doutorando pela
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), o pesquisador Rodrigo
Travitzki também produz sua tese com base na comparação entre o NSE (calculado
com base nas respostas dos questionários do Enem) e as notas obtidas pelos
alunos no exame. No trabalho, que deve ser defendido entre fevereiro e março de
2013, ele toma como objeto de pesquisa quase 20 mil escolas de ensino médio de
todo o País que foram incluídas no ranking do Enem 2009 (muito próximo do total
das instituições, já que, segundo o Censo Escolar 2009, quase 26 mil
instituições no Brasil oferecem ensino médio). Travitzki
concluiu que o NSE tem poder de determinar a variação das notas das escolas.
Segundo o pesquisador, os fatores socioeconômicos explicam em torno de 80% o
desempenho no Enem de cada instituição. Há outras variáveis, como o tipo de
escola (regular ou EJA) e o Estado em que ela está localizada. Mas a maior
parte é atribuída ao NSE. Apesar de o
estudo ter como objeto as notas do Enem de 2009, Travitzki aposta que o mesmo
diagnóstico poderia ser feito nos anos seguintes. "Não vejo nenhum fator
diferente. Acho que pode mudar um pouco o número, mas nada muito longe
disso", afirma. Ele presume, ainda, que, sem a publicação da nota da
redação em 2011 (em 2009, ela representava praticamente a metade da nota das
escolas), esse número poderia até aumentar para cerca de 85%. "A redação,
pelo menos no Enem, é menos determinada por fatores externos", esclarece. Pesquisador
é contrário à ideia de determinismo social Mesmo com o alto
nível de influência do NSE na determinação das notas do Enem, Travitzki prefere
não afirmar que há um determinismo social na qualidade do ensino e do
aprendizado nas escolas brasileiras. Para ele, definir como determinismo é uma
forma simplista de justificar o problema. "Não é uma característica
exclusiva do Enem. É um problema mundial", observa. O pesquisador
estima que, no mundo, esse índice varie entre 70% e 95%. Na comparação feita
pelo professor da UFMG, aparecem escolas que fogem ao padrão comum de baixo NSE
associado à nota baixa no exame, ficando fora da reta. Essas instituições se
distinguem pelo bom projeto pedagógico oferecido. "A gente usa isso para
chamar atenção sobre como realmente precisamos de bons projetos educacionais",
analisa Soares. Entre as escolas de alto NSE, também pode haver distinção,
geralmente registrada quando há processo de seleção dos melhores alunos para a
realização da matrícula. Embora não
considere o NSE um fator determinista, Travitzki concorda que a melhoria das
condições socioeconômicas dos alunos de uma escola contribuiria para
aperfeiçoar a educação no País. O pesquisador afirma que condições mínimas de
alimentação e acesso à cultura, por exemplo, poderiam resultar em um melhor
desempenho e aproveitamento das aulas. "No fundo, uma política social é
uma política educativa", entende. Soares, contudo, ataca a lógica
educacional na sua base. Para ele, não se trata de mudar apenas o nível
socioeconômico das famílias (o que requer ações e investimentos de longo
prazo), mas sim a escola. "A educação não poderia simplesmente refletir
essas condições", define. O professor da
UFMG ainda lembra que quem mais precisa da escola é justamente quem menos
recebe o devido acompanhamento, uma vez que nessas instituições onde o baixo
NSE é percebido, o ensino geralmente é mais deficiente; já nas escolas com bons
alunos, o professor opina que sobra pouco para que a escola faça a diferença.
"A gente não pode fazer de conta que pode olhar todas as escolas e alunos
da mesma forma. Eles vêm de lugares diferentes, com necessidades
diferentes", considera. Crítica
ao ranking Os levantamentos
feitos tanto pelo doutorando da USP quanto pelo professor da UFMG colocam em
discussão outra questão: o ranqueamento das escolas segundo a nota obtida no
Enem. Para Soares, empregar o exame para avaliar a qualidade de ensino de uma
instituição resulta em um indicador extremamente frágil. "É ruim que ele
receba a chancela de ser a forma como as famílias olham as escolas",
pontua. O professor da UFMG acredita que o ranking legitima uma atitude
socialmente perversa de creditar às escolas no topo da lista méritos que podem
ser dos alunos. "A posição da escola não pode ser tomada como uma boa
medida de excelência de seu projeto pedagógico. Pode refletir simplesmente o
sucesso do sistema de seleção da escola", destaca Soares. A publicação de
indicadores é considerada fundamental por Travitzki, embora ele faça ressalvas
sobre a utilização do modelo de ranking para a educação. O pesquisador afirma
que as comparações fazem mais sentido quando levam em conta a qualidade em vez
de medir se uma escola fica em 1º ou 10º lugar. "É importante pensar em
outros indicadores de qualidade escolar", ressalta. Com sua tese,
Travitzki pretende desmistificar a ideia de que a pior escola do Enem é também
a pior do Brasil. O objetivo mais imediato, segundo ele, é identificar boas
instituições que não aparecem no ranking porque trabalham em condições muito
difíceis. A longo prazo, o pesquisador pretende lançar a discussão sobre a
necessidade de pensar em outras formas de avaliação do ensino. Ele enumera dois
dos principais perigos em tomar o Enem como referência para um ranking. Um
deles é produzir um efeito que eleve ainda mais a posição das instituições com
notas altas, provocando a queda das que estão por baixo na lista. O outro, na
visão de Travitzki, é o risco de as escolas passarem a produzir um currículo
com base no exame. "Vira preparação para o Enem e leva ao empobrecimento
do currículo", alerta.